quinta-feira, 19 de julho de 2018

O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro, e este foi o empenho do apóstolo (i.e., Anchieta). Na passagem de uma esfera simbólica para outra, Anchieta encontrou óbices por vezes incontornáveis. Como dizer aos tupis, por exemplo, a palavra pecado, se eles careciam até mesmo da sua noção, ao menos no registro que esta assumiria ao longo da Idade Média européia? ... O mais comum é a busca de alguma homologia entre as duas línguas, com resultados de valor desigual:

Bispo é Pa'iguaçu, quer dizer, senhor maior. Nossa Senhora às vezes aparece sob o nome Tupãsy, mãe de Tupã. O reino de Deus é Tupãretama, Terra de Tupã. Igreja, coerentemente, é Tupãoka, casa de Tupã. Alma é 'anga, que vale tanto para sombra quanto para o espírito dos antepassados. Demônio é anhanga, espírito errante e perigoso. Para a figura bíblico-cristã do anjo, Anchieta cunha o vocábulo karaibebé, profeta voador...

A nova representação do sagrado assim produzida já não era nem a teologia cristã nem a crença tupi, mas uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível.

Começando pela arbitrária equação Tupã-Deus judeu-cristão, todo o sistema de correspondências assim criado procedia de atalhos incertos. Tupã era o nome, talvez onomatopaico, de uma força cósmica identificada com o trovão, fenômeno celeste que teria ocorrido a primeira vez com o arrebentamento de uma personagem mítica, Maíra-Monã. De qualquer modo, o que poderia significar, para a mente dos tupis o nome de Tupã com a noção de um Deus uno e trino, ao mesmo tempo todo-poderoso, e o vulnerável Filho do Homem dos Evangelhos?

Alfredo Bosi, Dialética da Colonização.


O TROVÃO E O VENTO é um livro escrito por Kaká Werá, com 250 páginas, divididas em quatro capítulos e publicada no ano de 2016 pela Polar Editora.

Tupi or not Tupi? A célebre frase do Manifesto Antropófago ainda se faz questão nos dias de hoje. Num país cada vez mais dividido e empenhado nas lutas por identificação, uma das características principais do nosso povo - a da mestiçagem e sincretismo social e ideológico - vem pouco a pouco dando lugar a discursos de auto afirmação étnicas, políticas e sexuais, que com a força de seu sectarismo cada vez mais distanciam seus cidadãos, que até não muito, viam-se como únicos, apesar das diferenças.

Nesta disputa sempre polarizada, onde quem não escolhe um lado é automaticamente lançado para o campo do inimigo, os justiceiros -  acromatópsicos por opção - parecem enxergar apenas duas cores nesta nação multicolorida: preto ou branco. Contrariando a descrição de Pero Vaz de Caminha que definira nossos ancestrais como pardos de tom avermelhado, ou ainda a própria honestidade intelectual e visual de perceber e admitir que até os dias de hoje nossa gente é majoritariamente mestiça, fruto do intercruzamento de brancos, pretos e vermelhos, querem mais uma vez excluir da existência o sangue e a pele indígena, como se o Brasil fosse metade Europa, metade África, esquecendo-se que este continente se chama América. Mas não se derrota um povo guerreiro tão facilmente. E se antes as disputas se travavam na ponta da flecha e da lança, comendo a carne do adversário como um símbolo de honra e vitória, nos dias atuais é através da resistência, do estudo e do conhecimento que se vence uma batalha.

Dr. Patrick Paul, assina o prefácio desta obra dizendo que ficou muito feliz com a oportunidade de escrevê-lo e em ter conhecido Kaká, já que não sabia nada sobre a história original do Brasil, mas que percebeu muitas similaridades em alguns processos de supressão, como aqueles da língua, cultura e religião dos povos indígenas, que também ocorreram sobre determinados povos europeus. E salienta que, embora o estudo do passado seja importante, uma volta aos modelos sociais antigos, em sua completude, são inviáveis uma vez que eles próprios estivessem adaptados a seus tempos, as suas realidades. Sendo assim, este tipo de conhecimento nos serve como uma maneira de estabelecer um equilíbrio entre aquilo que se tinha, para entender melhor aquilo que se é. Para além disso destaca ainda uma série de relações entre os conceitos religio-filosóficos dos tupi-guarani com a Alquimia, Cabala, filosofia grega e oriental, dentre outros.

Kaká fora atraído aos guarani através de um pedido de socorro, de um pequeno grupo que vivia as margens da represa Billings em SP, em meio a miséria e a doença, sem entretanto abandonarem o riso e o respeito as tradições. Conviveu dez anos com eles e encantou-se pelos cantos do Opy, assim como outros elementos da cultura, e reuniu nesta obra o que aprendera em todos estes anos de vivência.

A etnia Tupi, provavelmente a maior e que mais influenciou as terras brasileiras, surgiu há cerca de 12.000 anos. De característica semi-nômade, desdobrou-se em vários outros segmentos étnicos conhecidos como tupinambás, tupinikins, guaranis, kamaiurás, etc. De comportamento aguerrido, os tupi também eram dedicados ao moitará (escambo) e ao puxirum (uma espécie de serviço de camaradagem). Dentre suas andanças, comunicação e comércio, criaram estradas de ligação entre os dois pontos do continente, mantinham indivíduos destacados para transitar especificamente dentre estes espaços e com isso, tiveram contato com os povos andinos como quétchua e aymara.

O livro nos traz esta introdução sobre as questões sócio-culturais que envolviam os tupi para então tratar de seu tema principal: a religiosidade. Segundo nos conta o autor, os guarani se denominam jeguakava tenonde porangue-i. A expressão significa: " os primeiros adornados, que caminhavam de plumas sobre a cabeça". Foram os dirigentes desses adornados que receberam os cânticos sob inspiração do Céu. E foi sua comunidade que acolheu e passou a reproduzi-los no Opy - ou, como é conhecida hoje: a Casa de Rezas. pg 35 

Com a chegada do branco e seus missionários, na ânsia de fazer com que esquecessem suas práticas religiosas, alguns sacerdotes passaram a subornar certos índios, de modo a fazer com que abandonassem seus cânticos, que tinham por objetivo, amansar o Trovão e o Vento, ou alma e a mente. Mas é certo que os cristãos não foram bem sucedidos nesta empresa, uma vez que as rezas indígenas tenham sobrevivido até os dias de hoje.

Baseados na crença do deus Tupã, que segundo estudiosos não possui uma tradução ou sentido plenamente conhecido, mas costumeiramente associado ao trovão, seria ele um outro aspecto de Poromonham, o Absoluto Incomensurável, de onde Nhamandú, o Inominável, vibra. Desta conjuntura saem dez princípios norteadores para a humanidade, desenvolvidos ponto a ponto pelo autor nesta obra.

Todos estes elementos formam então a base para o foco principal do livro: os cânticos que educam os ventos. Escritos em guarani e português, são divididos em quatro grupos: 


  • I - Maino i reko ypi kue / Os Primeiros Costumes do Colibri; 
  • II - Ayvu rapyta / Os Fundamentos do Ser; 
  • III - Yvy tenondé / A Primeira Terra; 
  • IV - Oñemboapyka pota jeayú porangue i rembi rerovy'a rã i / Está na hora de dar assento a um Ser, para alegria dos bem amados. 


Por fim, o autor nos sugere um exercício a ser praticado durante 21 dias, com textos oriundos de seus processos rituais, para serem usados como meditação diária.

Esta é uma obra introdutória, leve e instrutiva. Se comparados, muitos dos conceitos indígenas se assemelham em muitos aspectos a muitos elementos do esoterismo indo-europeu, e ficamos mesmo com a sensação de que, com tantas similaridades, se talvez não sejam conceitos modernos, pós contato com o branco. A falta de registros escritos pode dificultar essa resposta, embora os índios sejam sempre lembrados como tendo uma memória impecável sobre suas origens e tradições. Independentemente disso, o livro cumpre aquilo que propõe e certamente, abre possibilidades para ainda outras obras complementares a esta...que sinceramente, esperamos que surjam, para que cada vez mais tomemos consciência que o Brasil foi, é e também continuará sendo índio!

por Arãnhangá



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