segunda-feira, 26 de março de 2018

Era tarde da noite. Conversávamos na cozinha enquanto ela preparava uns tira-gostos para acompanhar a cerveja gelada. A conversa foi se apimentando junto aos olhares de desejo e as insinuações sexuais. Nos beijamos com a mesma intensidade da primeira vez. Ao tentar tocar seu sexo, segurou minha mão e sussurrou no meu ouvido como quem confessasse um pecado: estou menstruada!

Não esperava por isso. Esfriei. Disse e olhou-me nos olhos como que esperando que eu tomasse a decisão a partir daquele ponto, afinal de contas, fui eu quem sempre deixou claro que bandeira vermelha é sinal de impedimento. Fomos para o quarto. Pedi então que ao menos apagássemos a luz desta vez. Não saímos do básico. Gozamos.

Fui direto para o chuveiro. Por toda a extensão do meu pênis via-se o vermelho-sangue que agora pingava da ponta da minha glande e escorria pelo piso branco em direção ao ralo. Minha pressão baixou. Fiquei meio zonzo. Não, nunca foi por frescura, mas um certo nível de hematofobia. Ela, preocupada, veio ver como eu estava:

- Você está bem, Allan?
- Não exatamente, mas vou superar...

LUA VERMELHA é um livro escrito por Miranda Gray, com 294 páginas, divididas em 6 capítulos e publicado no ano de 2017 pela editora Pensamento.


Os novos sistemas de magia, algumas religiões modernas, além de outros tantos movimentos políticos, ideológicos e artísticos parecem combinar em uma coisa: a mulher precisa ser vista, ouvida, compreendida e acima de tudo, respeitada nestes novos tempos. Por mais lógico que isso possa parecer para muitos de nós, acostumados com os discursos igualitários modernos, basta muito pouco para perceber que a realidade em cada um destes campos era deveras diferente para elas em tempos outros. Por isso, para muitas, ainda há muito o que mudar e melhorar.


Se as causas para grande parte das mazelas são oriundas da ignorância, é na busca do conhecimento que nos livramos das correntes que nos limitam e nos impedem de compreender a realidade do outro. Não se deveria considerar que o fato de sermos homens há de nos livrar da necessidade desta compreensão, especialmente pela inconteste realidade de sermos gerados e, de uma forma geral, criados por mulheres. Muitos de nós casam-se com elas, e são elas que dão origem a nossos filhos e perpetuam nossa existência através deles, contribuindo e cumprindo assim a função instintiva e inerente a todo ser vivo de reproduzir seus genes e imortalizar-se através de novos seres. Portanto, nos cabe levar em conta que como coautoras fundamentais para nossa vida, devemo-nas algo, e se o que querem é ser ouvidas, então que abramos nossos ouvidos de forma empática para tudo aquilo que elas tem para nos dizer. 

Este nem sempre é um exercício fácil para a maioria de nós, homens acostumados a darmos violência e indiferença como recompensa para o tratamento de cuidado e amor que muitas vezes recebemos delas, mas é preciso romper padrões caso queiramos estabelecer uma relação mais respeitosa para ambos os lados frente aos novos tempos que virão, e a literatura pode ser um ótimo começo para isso. Caso seja homem, acostume-se com a ideia dos pronomes femininos nesta leitura e com as referências a coisas que você provavelmente evita ou desconhece. Caso você seja mulher, este livro foi feito para você. 

O assunto principal aqui costuma incomodar a muitos, de ambos os sexos: menstruação. A autora inicia seu livro falando sobre a percepção de que seu trabalho - ela, uma ilustradora - variava do preciso ao mais abstrato de acordo com seu período menstrual e que frequentemente sofria com essa oscilação, uma vez que estas mudanças nem sempre estavam em acordo com suas perspectivas profissionais. Foi assim que começou então a pesquisar sobre o ciclo de sangramento, inclusive no campo religioso através de deusas e mitologias, e ao perceber conexões diversas entre estes elementos e com outras mulheres, dera início a este título.

Miranda nos esclarece que Lua Vermelha fora escrito para reorientar a percepção deturpada e negativa que a mulher tem sobre seus ciclos e tem ainda uma proposta de buscar os elementos subjetivos existentes nos folclores e lendas sob a luz da interpretação positiva da menstruação. Assim, nos traz exemplos de culturas que tanto exaltaram a mulher sangrenta como divina e poderosa, como aquelas outras tantas que as sentenciaram ao isolamento, e chegavam a extremos de condenar a morte aqueles que ousassem tocá-las. Seu objetivo é claro: mulheres precisam se observar. Precisam manter diários sobre seus períodos, registrando datas, fases da lua, sonhos, sentimentos, estados de saúde, inspirações e tudo mais que puderem relacionar.

Logo em seu princípio, a autora nos traz a história de Eva, uma menina que vai para o Plano Astral e tem uma série de experiências com entidades e deidades femininas até a menstruação. Este conto é usado como base de forma mais ou menos simbólica, para indicar ideias e exercícios que serão propostos no decorrer do livro. A autora investe constantemente no argumento de que no passado as mulheres eram por muitos respeitadas em seus períodos, já que muitas culturas antigas baseavam seus calendários e mitos na Lua, e a relacionavam a mulher e suas diversas fases, tais como: a donzela, sendo aquela que nunca fora penetrada ou que ainda não alcançara a menarca; a senhora, aquela independente e que teve sua primeira menstruação ou ainda grávida;  a bruxa como aquela velha que chegou na menopausa, etc...as correlações são várias e não se limitam ao campo religioso, uma vez que reinterpretara também os contos infantis, tais como Branca de Neve e Bela Adormecida, sob o argumento de que tais contos contém alusões a estes períodos.


Como uma das propostas principais desta edição, nos é apresentada a Mandala Lunar, um painel passível de ser feito de diversas maneiras, contendo um registro detalhado dos eventos menstruais de modo que se estabeleça uma percepção consciente de todos os benefícios e reveses oriundos destas fases, para que assim, se possa ter a exata noção de aquele momento é apenas consequência da menstruação, e que no devido tempo, vai passar. 


Este livro tem um único objetivo: fazer com que a mulher observe seus ciclos e reinterprete suas consequências de modo positivo. O mesmo faz a autora sobre muitos aspectos mitológicos, religiosos e literários, reinterpretando-os sob uma perspectiva exclusiva: a da menstruação. É radical sob alguns aspectos sem ser política, como quando sugere que mulheres vivam a experiência de não usarem tampões e absorventes externos, de modo a sangrarem de forma livre e romperem certos estigmas sociais. É aqui que Gray também vai sugerir que a TPM e as dores - sentidas por algumas mulheres - fazem parte de todo o processo, e que estas sensações, ao invés de amaldiçoadas, devem ser compreendidas e dominadas. Por fim, sugere uma série de rituais, exercícios de visualização e práticas físicas relacionadas a cada uma das fases.

Lua Vermelha é em grande parte repetitivo, passando por vezes a impressão de que 'ela já disse isso antes'. Apesar das constantes referências religiosas, os rituais contidos aqui não possuem um caráter mágico, mas muito mais psicológico: são viagens guiadas, muitas delas relacionadas a história que ela criara no começo do livro. Fala para mulheres e nada ou praticamente nada da relação destas para com seus maridos ou filhos: a proposta é que a mulher dedique-se e olhe para si neste momento. 

Como homem e leitor de uma realidade completamente diferente da minha, certamente me fez refletir que é preciso olhar com mais carinho para estes momentos tão sensíveis de nossas mães, irmãs, esposas, amigas, parceiras, mulheres.

por Allan Trindade
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