domingo, 28 de janeiro de 2018

Minha mãe sempre falou sobre esse meu estranho hábito de infância de forma intrigada. É provável que eu tivesse cerca de cinco anos e sinceramente não lembro de ter feito isso por tantas vezes quanto ela relata, mas desse dia em específico, recordo-me com certa nitidez. Segundo me disse o ritual era praticamente diário: acordava por volta das três da manhã, ia até a cozinha, pegava um saco com feijões e me despedia dizendo que ia embora para sempre. Para me convencer do contrário, meu pai tinha que dar uma volta comigo na praça escura e deserta que fica próxima a nossa casa.

Certa noite acordei como de costume e cumpri cada uma das etapas. Mas ao que me lembro, naquele dia, meus pais não se levantaram para fazer a parte deles. Como o plano de ir embora não incluía a companhia dos dois de qualquer forma, abri a janela do nosso quarto para fugir. À minha frente o quintal, com o tanque de roupas feito de cimento alguns metros de distância - que eu adorava encher para tomar banho - e uma pilastra. Tal qual um imã que mesmo sem querer suga o metal para perto de si, meu olhar foi atraído para aquela direção.

À frente daquela coluna algo incomum se destacava ao breu naquela noite iluminada apenas pelo clarão da Lua. Um homem de terno e chapéu xadrez estava lá, encostado, com a face sem olhos, nariz ou boca, tão negro quanto o negro do fundo de um poço, tão congelante quanto a sensação de estar indefeso quando se precisa de ajuda. Senti meu coração acelerar, meu corpo paralisar, meus pelos se arrepiarem, sensações estas que se repetiriam anos mais tarde em situações semelhantes outras. Não conseguia gritar ou desviar minha atenção daquela visão. Por quanto tempo fiquei naquele estado, não sei. O vulto nada fez, parecia apenas querer que eu o visse. 

O vi e nunca mais esqueci.

ATRAVÉS DOS PORTAIS DA MORTE é um livro escrito por Dion Fortune, publicado no Brasil pela editora Pensamento no ano de 1993, com 120 páginas, dividas em 15 capítulos.

Morrer é o cessar do viver. Muitas são as implicações filosóficas que podem ser atribuídas a este conceito, assim como muitos são aqueles que, até os dias de hoje, se debruçam fisicamente sobre métodos para tentar protelar a temida morte. E por que a tememos? Temos medo da dor? Mas e todos aqueles casos de pessoas que morrem em paz? E todos aqueles outros casos em que o impacto de algum acidente é tão fulminante que nem mesmo dá a possibilidade para que  a vítima se conscientize do que lhe ocorrera? E se há continuidade na vida depois da morte, então o que há de existir por lá?

Neste título, Dion nos induz a este tipo de reflexão e sugere que não tememos a morte em si, mas o desconhecido e a possibilidade deste encontro. Iniciados de várias épocas e de vários lugares do mundo, ousaram mergulhar neste mar de incertezas e trazer à superfície o conhecimento sobre este estado de mistério. Se a morte é uma etapa da vida, ela não deve ser temida, mas compreendida.

A consciência da continuidade e a crença na reencarnação são então o norte desta obra. Sobre esta continuidade, nos diz a autora, para alguns, há apenas um desligamento da consciência para com o corpo material, como se morrer fosse semelhante ao ato de dormir e acordar num outro local. Já para outros, psiquicamente desenvolvidos, todo este processo se dá de maneira consciente, e esta passagem ocorre sem nenhum tipo de trauma, ou necessidade de adaptação ao chegar lá, uma vez que sempre estiveram em contato com o outro lado. Em ambos os casos, e até mesmo naqueles onde a morte ocorre de forma indesejada, destaca que nossos entes queridos chegam ao nosso encontro, e para aqueles que não os tiveram em vida, são as almas semelhantes que tendem a se aproximar.

Fortune destaca que a relação de vivos e mortos não cessa com a morte, mesmo para aqueles que não creem na vida espiritual, uma vez que ateus também sofram a perda de seus amados. Esse tipo de relação emocional reflete sensações em todos os envolvidos - vivos e mortos - e se faz necessário que ambos os lados se esforcem para a compreensão e função de cada etapa da vida. O luto tem sua função de ser, entretanto, tem de ser sutilizado pela consciência da responsabilidade das energias emanadas.

A autora apresenta a crença num período purgatório para a alma, definido como um estado mental de reflexão sobre sua existência material, para só então, evoluída, estar apta para o  restabelecimento de contatos. Sendo a lamúria permanente dos vivos, e o chamamento dos falecidos, desencorajada, pois podem levar o desencarnado a ideia de que o plano terrestre é melhor que o local em que se encontram, gerando desta forma bloqueio do desenvolvimento ou incentivando o mesmo a se tornar algum tipo de obsessor.

Em seu aspecto esotérico, alega ser possível avaliar através de cálculos astrológicos, os momentos mais propícios para nossa morte, mas que esta não deveria ser a preocupação de ninguém, uma vez que até os setenta anos todos deveriam lutar e se esforçar apenas para viver. Para além disto, diz que no momento da passagem o duplo etérico ainda está em fase de transição, privado do suprimento de prana que absorve do Sol através do corpo físico, podendo vir a absorver esta energia dos presentes que tenham com ele algum tipo de laço, ou ainda dos elementos funerários do local, tais como velas e flores, traduz os benefícios de rituais para a decomposição de corpos sutis, assim como razões para a cremação.

Este é um livro curto, que traz consigo reflexões sobre a função do desencarne e é baseado na forte e comum crença que permeia os meios ocultistas e espiritualistas: a morte é apenas mais uma etapa da vida.

Sua leitura é simples e fácil, com ideias corriqueiras a qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento sobre o campo espiritual. Traz algumas referências religiosas de inclinação pessoal da autora. É introdutório sem ser leviano.

por Allan Trindade




segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

" uma festa para a vida e uma festa ainda maior para a morte!...Ah! tua morte será adorável: quem a vir ficará feliz. Tua morte será o selo da promessa de nosso amor de eras. Vinde! "
AL II:41 - 66

1° de Dezembro de 1947. Morre  em Netherwood de bronquite crônica agravada por pleurisia e degeneração do miocárdio,  Edward Alexander Crowley, mais conhecido como Aleister Crowley. Partiu aos 72 anos de forma tranquila e destemida, como um sopro, movendo as cortinas do pequeno e humilde quarto em que estava hospedado.

A partir daquela data muitas seriam as disputas pelos direitos sobre as obras do Profeta de Thelema, desentendimentos que correriam o mundo, incluindo alguns bem conhecidos personagens brasileiros. Tempos que também que ficaram na história.

Setenta anos se passaram e com eles, o direito a exclusividade sobre os livros da Grande Besta caíram em domínio público. Uma nova etapa então se inicia. Na nossa geração, as contendas não são mais travadas por quem pode ou não traduzir suas obras, mas sobre quem faz melhor!

O LIVRO DA LEI é um livro escrito por Aleister Crowley, publicado pela editora Chave no ano de 2017, com 207 páginas divididas em 7 partes.

Antes de mais nada é preciso que o leitor interessado nesta obra saiba que esta é uma edição histórica, a primeira a ser publicada no período de domínio público dos escritos de Aleister Crowley. Publicações anteriores a esta - salvo aquelas autorizadas ou lançadas oficialmente pela O.T.O, detentora dos direitos autorais até então - são ilegais. Portanto, esta publicação é marca de uma divisão de tempos dos libri de Thelema no Brasil.

Feito em capa dura, roxa com grafismos cor de abóbora, foge ao padrão comum produzido em vermelho. Não poderíamos deixar de destacar o fator estético, que de fato, foi pensado com bom gosto. Para além disso, ressaltamos que esta não é uma publicação de objetivo estritamente religioso, mas vem acompanhada de alguns outros elementos, textos, que precedem e sucedem o Liber AL vel Legis em seu miolo.

Em seu prefácio, escrito por M.B., destaca a grande importância que Crowley teve dentro e fora do Ocultismo, servindo de influência para intelectuais dos mais variados gêneros, e ainda para a cultura pop, com seus quadrinhos, bandas, filmes, clipes, músicas e todo um universo de elementos que fazem referência direta e indireta a ele. Sem dúvidas, uma ótima fonte para pesquisas.

Na Introdução a Edição Brasileira, assinada por Marina Della Valle, a tradutora do livro, nos traz um ótimo resumo da biografia de Aleister, complementado pela história do recebimento do Livro da Lei,  seguido por suas explicações sobre os desafios de traduzi-lo. Segundo nos diz


O Livro da Lei é um texto cheio de particularidades. Há inconsistência de grafias, como o nome da deusa Nuit, que aparece também como Nuith; o fraseado muitas vezes é incomum e dá margem a obscuridades; há mudanças bruscas de "tu" para "vós" e vice-versa; há também o uso de "vós" quando o narrador obviamente se dirige a uma só pessoa; o uso de maiúsculas não segue as regras comuns do idioma original e há mesmo uma palavra que não existe no inglês, questões diligentemente mencionadas por Crowley em seu comentário sobre o livro...
pg. 22 


Esta edição respeita a exigência de que as traduções devam sempre vir acompanhadas do original, e a diagramação fez um ótimo trabalho em colocar - uma em cada página -  versão em inglês ladeada pela tradução em português.

Não entraremos aqui no mérito de questionar as convicções religio-filosóficas da tradutora para ter sido incumbida desta função, já que há uma prescrição encontrada nos libri de Thelema para que traduções do Livro da Lei sejam feitas apenas por thelemitas graduados, entretanto, e levando em consideração o comentário da autora destacado acima, e onde à continuidade do capítulo a mesma deixa claro ter ciência sobre elementos gemátricos que compõem a produção original deste livro, não podemos deixar de citar o incômodo que por vezes sentimos ao ler sua versão. Exemplificaremos :


I:7.Behold! it is revealed by Aiwass the minister of Hoor-paar-kraat.

I:7. Contemplai! [*] é revelado por Aiwass o ministro de Hoor-paar-kraat.
*O pronome ' it / isto ' foi eliminado.

I:9. Worship then the Khabs, and behold my light shed over you!

I:9. Adorai então [*] Khabs, e contemplai minha luz derramada sobre vós!
* O artigo ' the / o ' foi eliminado.


[ o destaque em negrito foi usado por nós apenas para uma melhor visualização do texto e não constitui sua forma original.]

Nos parece que estes dois exemplos sejam suficientes para indicar a razão de nossa fala, entretanto, é importante que o leitor tenha em mente que isso ocorre em vários momentos da tradução.

Fato é que a língua portuguesa permite, através de seus vocábulos, indicar artigos e pronomes sem a necessidade de tê-los ali, de forma aparente. Todavia, esta é uma possibilidade e não uma obrigatoriedade, ou seja, não entendemos como necessária a eliminação destes nesta tradução, especialmente por sua natureza de caráter profundamente esotérico, onde " pingos podem sim ser lidos como letras. "

Obviamente que não estamos considerando que seja possível uma correspondência perfeita em traduções quando o assunto é gematria, - em termos gemátricos é imprescindível a análise do texto em sua língua original - porém, pensamos que num livro desta natureza, mesmo na tradução, manter é melhor que eliminar. Respeitamos a escolha e bagagem acadêmica da tradutora mas não podemos nos furtar de deixar registrada esta opinião.

O livro vem ainda acompanhado d'O Comento, os originais escritos pela Besta, e Os Comentários de Crowley, onde fala longamente sobre o recebimento do AL e as condições em que se encontrava, sua rejeição inicial para com o mesmo e dúvidas sobre sua natureza, análises sobre determinadas passagens, dentre outros.

Por fim, David Soares nos apresenta um capítulo onde trata do encontro de Aleister com Fernando Pessoa, e o possível contra gosto deste em encontrar o mesmo. Levanta questões sobre os reais interesses de Crowley para este encontro e destaca também o famoso evento arquitetado pelos dois onde o Mago fingira sua morte na Boca do Inferno. Fechamos o livro com o poema de Crowley intitulado Hino a Pã, em sua versão original e traduzido por Pessoa para a língua portuguesa.

Pensamos que a introdução desta resenha fale per se. Ter esse livro é uma oportunidade única de participar de um momento histórico, o resto é detalhe.


por Allan Trindade



post scriptum: e para aqueles que estejam curiosos para saber qual fora a tradução dada para a máxima "Do what thou wilt shall be the whole of the Law", a forma usada aqui é "Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei."


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