quarta-feira, 14 de março de 2018

De todos os moradores da minha rua, uma velha senhora chamava atenção por seu jeito exótico de se vestir. Com seus prováveis um metro e sessenta de altura, andar lento, vestida permanentemente de preto e com um guarda-chuva de cor igual para protegê-la do sol, destacava-se ao longe a visão de qualquer um que direcionasse o olhar na direção em que estivesse. Seu marido, um velho de aparência absolutamente normal, costumava ficar sentado no portão daquela casinha estranha, e ao me ver, criança que eu era, passava a mão na minha cabeça e dizia com certo sotaque: Olá, Trindade!

Conhecia-os de perto, vez por outra minha mãe me levava lá para rezar a tal da espinhela caída. A casa era pobre, com uma sala repleta de santos católicos, velas, ramos de arruda e uma aura constante de religiosidade. É fato que eu tinha certo medo daquele lugar. Mas a tensão inicial era sempre compensada pelas boas energias de reza que aquela exótica velha cristã humildemente oferecia a todos de graça, se você não pudesse pagar, ou pelo valor que pudesse doar.

O tempo levou um a um. A casa, abandonada e sob escombros, está pouco a pouco sendo tomada pelas plantas. A memória um dia também vai se esvair. Mas a impressão permanece; de que já não se fazem mais bruxas como antigamente...


ARADIA O EVANGELHO DAS BRUXAS é um livro escrito por Charles Godfrey Leland, com 119 páginas, divididas em 15 capítulos, publicado no ano de 2016 pela Madras editora.

Embora esta seja uma edição recente, faz-se necessário posicionar o leitor em sua data original: 1899. Charles Leland, um inveterado pesquisador do tema de Bruxaria, autor de mais de 50 livros, empenhou-se em registrar nesta publicação parte daquela antiga tradição italiana de feitiços e adorações a deuses pagãos.

Stregheria, vocábulo utilizado para referir-se a bruxaria italiana enquanto exercício da feitiçaria ou ofício religioso, define a prática das strege, ou feiticeiras, que segundo o autor, fazem jus a realidade e devaneio atribuídos popularmente ao imaginário da magia, com suas produções e comércio de adivinhações, amuletos, feitiços, que podem ser apontadas como herdeiras de tradições familiares deste contexto.

Segundo Leland, parte da responsabilidade da existência destes homens e mulheres alinhados para com estas artes, seria a própria Igreja Católica, que ao atacá-los, produz um sentimento de atração nas mentes daquelas pessoas mais curiosas, aumentando, desta forma, o número de seus adeptos. Mas deixa claro que não é otimista sobre o futuro de nenhum destes lados, e prediz que tanto a bruxa quanto o padre correm o risco de desaparecer em um futuro próximo.

Baseado nesta perspectiva pessimista, ao conhecer uma senhora adepta de tais práticas, a incumbiu de recolher informações em meio a suas iguais, e usou este conhecimento para a formação deste livro, sob o preço, quem sabe, de nunca mais tê-la visto novamente.

Em poucas palavras, pode-se dizer que a bruxaria é conhecida como la vecchia religione, ou antiga religião, sendo Diana a Deusa e sua filha Aradia (ou Herodias) o Messias feminino, seu nascimento, como desceu à terra e instituiu as bruxas e a bruxaria, retornando então aos céus, são temas apresentados nessa pequena obra. Também fazem parte as cerimônias e invocações ou encantamentos a Diana e Aradia, o exorcismo de Caim e os feitiços da pedra sagrada, da arruda e da verbena que, segundo afirma o texto, integram o que se pode considerar uma celebração religiosa regular, para entoar ou recitar em encontros de bruxas. Além disso, também se incluem os singulares encantamentos ou bênçãos do mel, do trigo ou pão e sal, ou os bolos da refeição das bruxas, curiosamente clássicos, e um nítido vestígio dos Mistérios Romanos.
pg. 9


O parágrafo em destaque resume grande parte do conteúdo, e como complemento podemos dizer que este título parte do princípio que Diana, irmã de Lúcifer, deus do Sol e da Lua, e que fora expulso do Paraíso pelo orgulho de sua beleza, juntou-se a ele e deu a luz a Aradia (Heródias). Todo este ocorrido teria acontecido num tempo onde ricos humilhavam e escravizavam os pobres, e que estes, comumente tinham que fugir para poder garantirem sua sobrevivência. Assim, Diana instruiu Aradia para que descesse a Terra e ensinasse a estes oprimidos as técnicas de bruxaria e envenenamento para serem usadas contra ciganos, judeus e cristãos, seus principais opressores. A partir deste ponto, os capítulos incluem receitas de alimentos, histórias, fetiches e feitiços para os mais diversos fins e são, em grande parte, escritos em formas de versos bilíngues, em italiano e português.

Quando o nobre e o padre disserem que deves crer no Pai, no Filho e em Maria, tua resposta há de ser sempre: Vosso Deus, o Pai e Maria são três demônios...Pois o verdadeiro Deus-Pai não é o vosso: vim para destruir os maus e os destruirei...Vós que sois pobres e de fome sofreis, em miséria labutais e, muitas vezes, sofreis ainda a prisão, tendes também uma alma, e por vossos sofrimentos felizes sereis no outro mundo, e mau destino terão todos os que vos fizerem mal!
pg. 13

Este é um livro de caráter histórico, mas nem por isso menos empírico. Registra práticas de bruxaria italianas oriundas do século XIX, que possivelmente antecedem em muito esta data. É simples e direto. Cumpre de forma objetiva e satisfatória aquilo que propõe.

por Allan Trindade


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Um comentário:

  1. Seus textos são ótimos.Faço uma boa leitura com eles. A parte em que você cita a sua "vizinha de rua", a típica benzedeira, me fez lembrar também o meu vizinho de rua, que era adepto do candomblé, um senhor negro, alto e que fazia também rezas relacionadas a tal "espinhela caída". Eu particularmente,acho esse tipo de coisa muito interessante, apesar de nunca ter ido lá me benzer, por causa da minha família pertencer a outra religião. Ele ficava sempre ali na calçada, sentado em um banco de tronco rústico, debaixo de uma árvore que tinha em sua calçada, posso dizer que ele era um dos bruxos da "velha geração", conhecedor de remédios caseiros, ervas e rezas antigas.

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